DO TÚNEL DO TEMPO: A RAQUIANESTESIA GERAL

CARLOS ERNANI ROSADO SOARES

A raquianestesia prossegue sendo um dos métodos mais largamente adotados  na prática da cirurgia do  baixo abdome, pelve  e membros inferiores. Menos utilizada, mas ainda praticada para intervenções no abdome superior.

Foi em 1908 que surgiu o conceito de raquianestesia geral, introduzido por Thomas Jonnesco, em Bucarest. A raquianestesia, preconizada na América por Corning, em 1885, já ganhara foros de aceitação cirúrgica com Bier, na Alemanha e Tuffier na França. Acidentes graves levaram à suspensão do processo, que só retornaria em 1904 quando Fourneau descobriu a estovaina, menos tóxica e tão potente quanto a cocaína.

Mas até então, sua aplicação era restrita ao abdome inferior. Foi quando Jonnesco, baseado em extenso trabalho experimental, fez apresentação em 1908 no Congresso Internacional de Bruxelas, preconizando a utilização alta.

Mas já no ano seguinte, o próprio Bier, no Congresso de Cirurgia da Alemanha, refugou inteiramente o processo, no que foi acompanhado por Rehn, de Frankfurt.

Jonnesco insistia na tese, e em 1910 publicava trabalhos na França, Inglaterra e Alemanha, relatando 103 anestesias altas. Prosseguiu seu trabalho de proselitismo e fez demonstrações práticas na Inglaterra, e ainda na América, em Filadélfia, Chicago, Rochester,  e New York. Em 1910, Jonnesco já relatava 238 anestesias altas ao Congresso de Cirurgia de Paris. Em 1912, foi a vez da Alemanha, tendo obtido a conversão do próprio Bier que antes a condenara tão veementemente.

Para não cansar com tantos números, durante cinco anos ele e os confrades romenos praticaram 11.324 operações pela raque-estricno-estovainização, como ele chamava, sendo 1.035 altas e 10.389 baixas.

Por curiosidade, relatemos as operações “altas”:

73 sobre o crânio (43 hemicraniectomias, 15 trepanações da mastóide)

192 sobre a face (ressecção do maxilar superior uni e bilateral, etc.)
129 sobre o pescoço (32 simpatectomias, 55 tireoidectmias, 2 laringectomias totais, etc.  84 sobre os membros superiores, 36 sobre o tórax (amputação de mama, com autoplastia alargada, intervenções sobre o pulmão, coração, etc.)

Todos esses dados são do próprio livro de Jonnesco: “La Rachianesthésie générale”, de 1919.

Mas, afinal quem era Thomas Jonnesco?

Necessário se faz dizer que havia um intercâmbio intenso entre a França e a Romênia. Lembremos que a Romênia é o único país de língua latina no oriente europeu, pois até no nome evoca as legiões romanas que lá aportaram. Na maioria dos textos estrangeiros, o país é citado como România. Em qualquer das interpretações semânticas, o sentido é um só: a homenagem a Roma.

Recortemos trechos do Discurso em Homenagem a Jonnesco, pronunciado em 1926, por Jean Louis Faure. Jonnesco (nascido em 1860 e falecido naquele ano) fora convidado a fazer carreira na França, mas permaneceu fiel à sua pátria, embora ligado à França por todos os laços afetivos, pois “esse jovem da pura raça romena, que sentia correr nas suas veias o sangue dos soldados de Trajano, sabia bem que não mudaria nem de raça, nem de pátria, misturando-se aos filhos da velha Gália Romana, nutridos como todos os latinos pelo leite generoso da Loba do Capitólio. Mas, se resolveu ficar na pátria dos seus ancestrais, um pedaço do seu coração ficou entre nós”. Faure  fala, a seguir, de sua habilidade na cirur gia do simpático, e na sua obsessão da limpeza ganglionar no câncer do colo uterino.

Sem deixar de mostrar a emulação entre as escolas cirúrgicas  francesa e alemã, e sem poder fugir às determinantes geopolíticas de então, menciona a influência marcante que ele representou na “grande escola da Cirurgia Romena, que quase só, no meio de povos que sofreram a marca brutal da cirurgia germânica, representa gloriosamente essa cirurgia latina – eu diria mesmo essa cirurgia francesa, que põe acima dos dogmas e das teorias, e de montanhas de memórias que voltam à poeira, a clareza, a simplicidade e a virtude soberana do bom senso”. Faure fala ainda da guerra e seus terríveis desdobramentos, e conclui com uma declaração de amor à Romênia, “grande Romênia que sustenta agora, nos confins dos restos sangrantes da Europa, às p ortas misteriosas do país dos Novos Bárbaros, a bandeira do mundo latino”. E Faure, em certa parte de seu elogio de Thomas Jonnesco diz: ”Mas eu trairia a memória de meu amigo, se não dissesse aqui, como eu penso, que aos meus olhos, como aos olhos de todos os franceses, permanece sua glória mais pura. Thomas Jonnesco não foi somente um operador eminente, não foi somente o maior cirurgião do seu país, foi um grande cidadão. Não é necessário que a glória merecida do seu irmão faça olvidar a sua. Não é preciso que o papel desempenhado por Take Jonnesco nos grandes acontecimentos dos últimos anos faça esquecer seu próprio papel. Todos dois combateram lado a lado, cotovelo a cotovelo, pelo direito violado, pela justiça anulada, pela liberação dos povos oprimidos, pela grandeza e pela glória da nobre pátria romena”.

Estamos agora em 1931. Os horrores da guerra já se dissiparam, e Faure visita a Romênia. Recebido pelos antigos discípulos de Jonnesco, cuja escola se mantinha íntegra e coesa. A descrição dessa viagem é longa, e envolve diversos serviços cirúrgicos e cidades. Mencionei-a, propositalmente, exato para transcrever o arremate, retomando as palavras de Faure.

“Por toda parte, na Romênia, vi empregar a raquianestesia. A influência de Jonnesco foi, sob esse aspecto, preponderante. Raramente são vistos acidentes, e a mesma foi praticada de modo irrepreensível nos pacientes que operei. Não discuto, nem critico. Mas como falamos dessa questão, ao fim de um encantador jantar com o Professor Juvara, e como eu perguntasse a alguns cirurgiões presentes o que eles escolheriam se tivessem de ser operados eles mesmos, houve uma tocante e sincera unanimidade que preferiam ser operados dormindo. E isso não era para modificar minhas idéias. Tal como ela é, com suas qualidades e defeitos, eu admiro profundamente a anestesia raquidiana. Mas gosto mais de operar meus pacientes dormindo, como pediria para mim mesmo”.

Evidente que a presente memória histórica tem apenas esse sentido. A raquianestesia tem seu lugar hoje perfeitamente colocado, e a menção do trabalho de Jonnesco tem o mero objetivo de prestar tributo à memória de um pioneiro e desbravador, um médico sério e competente, pesquisador e coerente. Sua raque-anestesia geral é uma página já virada há muitos anos na evolução da Anestesia.

Natural da Romênia era o Prof. David Rosenberg,  falecido em 2003, e que teve presença científica das mais representativas em nosso país.  Também de ascendência romena é o ilustre e renomado Prof. Andy Petroianu, de Belo Horizonte. A ambos, rendo minha homenagem divulgando expressiva passagem da cirurgia daquele país.

* adaptado de Nota publicada no Boletim do Colégio Brasileiro de Cirurgiões

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