O que eu vi da morte

Devia ter uns oito a nove anos de idade. Morava com meus pais e irmãos em uma cidade do litoral do Piauí chamada Parnaíba. Cidade pequena, vizinhança tranquila, tínhamos uma grande rede de amigos pelo bairro.

Certa vez, um vizinho me convidou para irmos a lagoa do portinho, uma lagoa de águas pluviais (água retida das chuvas) que fica a menos de 10 km de parnaíba, para velejar usando um bote inflável e um caiaque. Sempre adorei esportes aquáticos, então, era uma aventura ideal.

Na época, os moradores se mantinham do pequeno comércio de bares na orla, e da pesca artesanal. Chegando lá, o desembarque do bote e do caiaque chamou a atenção da criançada no lugar. Usei o caiaque mas sempre tendo cuidado para me manter longe de um pequeno manguezal que ficava na borda esquerda da lagoa.

O manguezal é uma vegetação de alagado, com muitas raízes, onde não se pode prever direito o que tem por baixo do nivel da agua, de terreno lamacento, com grande risco de em uma pisada, afundar até a cintura.

Em um momento, escuto uma gritaria, que vinha da orla. Uma mãe, desesperada a procura do seu filho. Todos correm para o manguezal, onde antes estavam brincando as crianças da região.

Alguns adultos começaram a mergulhar sob as raízes e a procurar por algum vestígio da criança que poderia estar afogada. Então, alguém submerge com um garoto, aproximadamente da minha idade, coberto de lama até o pescoço.

Trouxeram para margem, o que antes era um barulho de choro e gritos, se emudeceu. Só tinha olhos e ouvidos para aquela criança. Começaram a fazer respiração boca a boca, “massagem cardíaca”, que só tempos depois iria descobrir o que havia se feito de errado.

Comovido, o pai do meu amigo, colocou a criança desfalecida e seus pais na caçamba de uma saveiro, e fomos todos para Parnaíba a procura de um hospital. Eu, meu amigo, a criança e seus pais.

Hoje, tenho remorso por não ter feito nada durante o transporte. Os cérebros das crianças tem um resistência a grandes períodos de falta de oxigenação. A simples compressão torácica, a massagem cardíaca, que qualquer criança pode aprender, durante o transporte, talvez tivesse mantido aquele jovem cérebro com alguma atividade.

Infelizmente, ele não resistiu. O grito da mãe ao ouvir a notícia destampou meus ouvidos e acendeu uma faísca no meu coração. Eu iria estudar como salvar um cérebro e um coração. Talvez tenha sido um dos motivos de ter escolhido a medicina e a anestesiologia.

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